domingo, 27 de maio de 2012

PROFISSÃO DE FÉ

Profissão de fé

    Ser soldado é uma profissão de fé. A grande maioria dos militares, quando ingressa na carreira, não é levada por nenhum outro motivo que não o de servir à pátria. Os vínculos que os prendem ao seu país e à sua gente são de tamanha profundidade que, para eles, o ato de ser soldado vai muito além de simplesmente vestir uma farda e cumprir com as obrigações decorrentes da vida na caserna. O soldado tem no seu elenco de valores um profundo sentimento de interação com a pátria, que é essencialmente dinâmico e começa no compromisso de colocar todo seu potencial intelectual e físico inteiramente ao serviço dela, culminando com o juramento solene de defendê-la com o sacrifício da própria vida.
     É uma relação muitas vezes não compreendida por integrantes de outros segmentos da sociedade, principalmente nos momentos de crise da nação, quando o compromisso de lealdade do soldado para com os destinos de sua pátria atinge a sublimação, para o bem ou para o mal de ambos. Engana-se quem pensa que o soldado, quando passa à inatividade, livra-se das servidões da sua profissão, abandona seus valores, sente-se descompromissado com o solene juramento que fez quando ainda jovem. Ao contrário, a simbologia da farda, expressa no ato de servir à pátria, continua presente no seu estado de espírito, como uma segunda pele a acompanhá-lo até a morte.
     Jamais um soldado assistirá impassível a sua pátria ser vilipendiada e humilhada. Mesmo açoitado pelo tempo, carcomido pela idade, fragilizado fisicamente, mesmo sem poder expressar a sua inconformidade, ele será sempre parte do solo, dos rios, das florestas, do povo de seu país e seu coração será o primeiro e o último a chorar por ele.
     A Legião da Infantaria é uma confraria de soldados “pé de poeira” da ativa e da reserva que se reúnem periodicamente para recordar velhos tempos, contar velhas histórias, trocar idéias com os mais jovens e saber deles o que está acontecendo de novo na arma do combate aproximado.
     No último dia dois de abril, a Legião da Infantaria se reuniu no quartel do 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, em São Leopoldo, onde, além da confraternização entre os companheiros do presente e do passado, a missão de paz no Haiti, com a duração de seis meses, cumprida pela Unidade e recentemente encerrada, foi relatada aos presentes.
    Presente à reunião, gozando de excelente saúde, lépido, esguio, completamente lúcido, lá estava o Gen Marsillac que do alto dos seus 89 anos era o decano dos legionários, mas que, com sua jovialidade contagiante, irradiou bom humor e otimismo aos mais jovens. Em dado momento, porém, o velho general foi tomado pela emoção. Após o canto da canção da Infantaria, aqueles que compartilhavam a mesa em que ele se encontrava viram seus olhos se embaçarem e as palavras que pronunciou ali, naquele círculo restrito, expressaram com rara propriedade a genuína alma do soldado, interpretada no início deste comentário.
    Falou o Gen Marsillac do seu sonho de que as Unidades do Exército permanecessem com suas denominações originais. Assim como, por exemplo, na Inglaterra, onde o 7º Regimento de Lanceiros da Índia mantém o seu nome original há mais de 300 anos, desde o dia em que foi criado, independentemente de sua constituição ou subordinação. Nesta linha de raciocínio, são as denominações  históricas dos Batalhões de Caçadores, dos Grupos de Artilharia de Dorso que marcam a mente do general que, convenhamos, se mantidas, não tirariam nem um pouco da operacionalidade e do charme das Unidades de hoje.
     Em outro momento, lembrou da euforia que ainda hoje sente, como uma injeção de vida, toda vez que, em casa antes de sair, coloca o distintivo ou a insígnia da Unidade onde participará de uma solenidade para a qual foi convidado. Pondo a mão no ombro do companheiro do lado, o velho general com o rosto emocionado revelou que este é para ele um momento mágico de renovação, no qual ele volta a ser o tenente do passado, se preparando para cumprir seu expediente no quartel.    Falou também do seu tempo de jovem oficial, recém saído da Escola Militar de Realengo, quando nem sequer sabia direito qual o seu salário mensal, diante da vida simples que levava e dos afazeres que lhe assoberbavam o dia-a-dia no quartel.
      A emoção do momento, também fez o velho soldado de infantaria revelar um desejo que talvez só a família soubesse. Quando morrer, ele quer ser cremado e quer que as suas cinzas sejam lançadas sobre a terra nua defronte a estátua do Brigadeiro Sampaio, na praça ao final da Rua da Praia, próxima ao Gasômetro, erigida em homenagem ao Patrono da Infantaria. Na verdade, a vontade do velho infante é uma atitude que expressa a materialização de uma simbologia extremamente significativa para um integrante de sua Arma: de um “pé de poeira” que retorna às origens.
     O relato do pensamento lúcido, puro e autêntico de um soldado de 88 anos só vem a confirmar a premissa de que o espírito militar do soldado não fenece com o tempo. O compromisso de servir à pátria é uma chama viva que arde no peito de cada soldado, não importa a idade. Para defendê-la nos momentos de perigo não é preciso que ele seja convocado. Atender ao chamado da pátria faz parte de um compromisso solene que o soldado assumiu na oportunidade em que a vocação lhe mostrou o caminho da carreira das armas.
Flávio Oscar Maurer