Profissão
de fé
Ser soldado é uma profissão de fé. A grande
maioria dos militares, quando ingressa na carreira, não é levada por nenhum outro
motivo que não o de servir à pátria. Os vínculos que os prendem ao seu país e à
sua gente são de tamanha profundidade que, para eles, o ato de ser soldado vai
muito além de simplesmente vestir uma farda e cumprir com as obrigações
decorrentes da vida na caserna. O soldado tem no seu elenco de valores um
profundo sentimento de interação com a pátria, que é essencialmente dinâmico e
começa no compromisso de colocar todo seu potencial intelectual e físico
inteiramente ao serviço dela, culminando com o juramento solene de defendê-la
com o sacrifício da própria vida.
É uma relação muitas vezes não
compreendida por integrantes de outros segmentos da sociedade, principalmente
nos momentos de crise da nação, quando o compromisso de lealdade do soldado
para com os destinos de sua pátria atinge a sublimação, para o bem ou para o
mal de ambos. Engana-se quem pensa que o soldado, quando passa à inatividade,
livra-se das servidões da sua profissão, abandona seus valores, sente-se
descompromissado com o solene juramento que fez quando ainda jovem. Ao
contrário, a simbologia da farda, expressa no ato de servir à pátria, continua
presente no seu estado de espírito, como uma segunda pele a acompanhá-lo até a
morte.
Jamais um soldado assistirá impassível a
sua pátria ser vilipendiada e humilhada. Mesmo açoitado pelo tempo, carcomido
pela idade, fragilizado fisicamente, mesmo sem poder expressar a sua
inconformidade, ele será sempre parte do solo, dos rios, das florestas, do povo
de seu país e seu coração será o primeiro e o último a chorar por ele.
A Legião da Infantaria é uma confraria de
soldados “pé de poeira” da ativa e da reserva que se reúnem periodicamente para
recordar velhos tempos, contar velhas histórias, trocar idéias com os mais
jovens e saber deles o que está acontecendo de novo na arma do combate
aproximado.
No último dia dois de abril, a Legião da
Infantaria se reuniu no quartel do 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, em São Leopoldo , onde,
além da confraternização entre os companheiros do presente e do passado, a
missão de paz no Haiti, com a duração de seis meses, cumprida pela Unidade e
recentemente encerrada, foi relatada aos presentes.
Presente à reunião, gozando de excelente
saúde, lépido, esguio, completamente lúcido, lá estava o Gen Marsillac que do
alto dos seus 89 anos era o decano dos legionários, mas que, com sua
jovialidade contagiante, irradiou bom humor e otimismo aos mais jovens. Em dado
momento, porém, o velho general foi tomado pela emoção. Após o canto da canção
da Infantaria, aqueles que compartilhavam a mesa em que ele se encontrava viram
seus olhos se embaçarem e as palavras que pronunciou ali, naquele círculo
restrito, expressaram com rara propriedade a genuína alma do soldado,
interpretada no início deste comentário.
Falou o Gen Marsillac do seu sonho de que
as Unidades do Exército permanecessem com suas denominações originais. Assim
como, por exemplo, na Inglaterra, onde o 7º Regimento de Lanceiros da Índia
mantém o seu nome original há mais de 300 anos, desde o dia em que foi criado,
independentemente de sua constituição ou subordinação. Nesta linha de
raciocínio, são as denominações históricas dos Batalhões de Caçadores, dos
Grupos de Artilharia de Dorso que marcam a mente do general que, convenhamos,
se mantidas, não tirariam nem um pouco da operacionalidade e do charme das
Unidades de hoje.
Em outro momento, lembrou da euforia que ainda
hoje sente, como uma injeção de vida, toda vez que, em casa antes de sair,
coloca o distintivo ou a insígnia da Unidade onde participará de uma solenidade
para a qual foi convidado. Pondo a mão no ombro do companheiro do lado, o velho
general com o rosto emocionado revelou que este é para ele um momento mágico de
renovação, no qual ele volta
a ser o tenente do passado, se preparando para cumprir seu expediente no
quartel. Falou também do seu tempo de
jovem oficial, recém saído da Escola Militar de Realengo, quando nem sequer
sabia direito qual o seu salário mensal, diante da vida simples que levava e
dos afazeres que lhe assoberbavam o dia-a-dia no quartel.
A emoção do momento, também fez o velho
soldado de infantaria revelar um desejo que talvez só a família soubesse. Quando
morrer, ele quer ser cremado e quer que as suas cinzas sejam lançadas sobre a
terra nua defronte a estátua do Brigadeiro Sampaio, na praça ao final da Rua da
Praia, próxima ao Gasômetro, erigida em homenagem ao Patrono da Infantaria. Na
verdade, a vontade do velho infante é uma atitude que expressa a materialização
de uma simbologia extremamente significativa para um integrante de sua Arma: de
um “pé de poeira” que retorna às origens.
O relato do pensamento lúcido, puro e
autêntico de um soldado de 88 anos só vem a confirmar a premissa de que o
espírito militar do soldado não fenece com o tempo. O compromisso de servir à
pátria é uma chama viva que arde no peito de cada soldado, não importa a idade.
Para defendê-la nos momentos de perigo não é preciso que ele seja convocado. Atender
ao chamado da pátria faz parte de um compromisso solene que o soldado assumiu
na oportunidade em que a vocação lhe mostrou o caminho da carreira das armas.
Flávio Oscar Maurer