Brasil - A história da Escola Nacional de Informações
Você
pode não saber, mas enquanto está aí lendo revista existe um departamento de
funcionários públicos em Brasília bisbilhotando a vida dos brasileiros – quem
sabe, você até está na lista dos investigados. E se você não tinha a menor idéia
de que seus impostos financiam um serviço desse tipo (espionagem, para ficar
claro do que estamos falando) não se preocupe: é apenas mais um dos que nunca
ouviram falar na escola brasileira de espiões, que completa 35 anos de
existência em março em plena fase de recuperação da efervescência dos velhos
tempos. Só em 2005, a instituição – que atualmente se chama Escola de
Inteligência (Esint) – formou cerca de 160 novos agentes secretos. Todos
devidamente submetidos a estágios de 3 meses e ao currículo que inclui aulas
como disfarce, espionagem eletrônica, criptografia, produção de documentos
sigilosos e "entrevista", ou seja, a arte de tirar informações de um
interlocutor.
Criada
oficialmente em 1971, com o nome de Escola Nacional de Informações (Esni), a
instituição nasceu para suprir a ditadura de agentes secretos e agir como um dos
braços do temido Serviço Nacional de Informações (SNI). Seu mentor foi o general
Emílio Garrastazu Médici, ex-chefe do SNI e presidente da República entre 1969 e
1974, os anos mais ferozes da repressão brasileira.
Como
não poderia deixar de ser, a instalação da Esni foi cercada de mistérios e
segredos. Quem deu uma boa ajuda para montar a escola foi a Agência Central de
Informações, a CIA. No começo de 1971, foram enviados a Washington, numa missão
secreta, dois veteranos do SNI: o general Enio dos Santos Pinheiro, que seria o
primeiro diretor-geral da escola, e o almirante Sérgio Doherty. A dupla ficou
algumas semanas enfurnada num hotel da cidade e lá mesmo recebeu o treinamento
da CIA. Numa das poucas vezes que puderam deixar o prédio, os brasileiros foram
levados para uma base militar onde assistiram a uma aula real de interrogatório
– afinal, se o SNI trabalhava diretamente ligado aos órgãos da repressão,
precisava saber como era feito o serviço sujo. Os americanos ensinaram que a
primeira providência era tirar a roupa do prisioneiro, como forma de quebrar sua
resistência por meio da humilhação. Depois disso, enquanto um agente fazia
perguntas ao prisioneiro, outro tomava nota das respostas e um terceiro assistia
a tudo, numa sala contígua, escondido atrás de um espelho falso.
De
volta ao Brasil, os militares brasileiros produziram as primeiras apostilas do
serviço secreto (veja quadros ao longo da reportagem), copiadas de manuais da
CIA. Enquanto o material didático da escola era elaborado, a sede da escola era
erguida – e como tudo naquela época de milagre econômico, a ordem era pensar
grande. Muito grande. O local escolhido para abrigar a Esni, junto com a nova
sede do SNI, foi um terreno gigantesco na capital federal, no Setor Policial
Sul, com 200 mil metros quadrados (equivalente a metade da área do Vaticano). As
instalações – que continuam todas lá, iguaizinhas ao que eram na década de 1970
– eram sofisticadas a ponto de causar espanto nos agentes secretos de países
ricos que visitavam a escola.
A
vedete da Esni era um estande de tiro subterrâneo. Projetado e construído nos
EUA, tinha cabines à prova de som separadas por vidros blindados. Um sistema de
comunicação permitia ao instrutor falar com os alunos por meio de microfones e
fones de ouvido. Os alvos eram mantidos na posição correta com a ajuda de jatos
de ar, o que fazia com que permanecessem no lugar mesmo depois de atingidos. O
atirador, por sua vez, podia conferir o resultado de sua performance acionando
um botão que fazia com que o alvo viesse até ele, deslizando num trilho
suspenso.
A
obra tinha outros requintes. Um deles era o cine-auditório, um dos primeiros
espaços no Brasil para projeção de filmes e realização de conferências em que
todos os assentos (na verdade, largas e confortáveis poltronas de couro) tinham
fones de ouvido com regulagem de som. Nos primeiros anos da escola, a maioria
dos filmes exibidos no cine-auditório eram produções de países comunistas,
apreendidas em batidas militares e policiais. As fitas – como é o caso de
Construção de um Monumento a Lenin em Leningrado, exibida pela primeira vez no
dia 2 de outubro de 1973 – serviam para mostrar aos alunos como agiam e pensavam
os comunistas, os inimigos da hora.
Também
havia refeitório, sala de jogos e alojamentos com capacidade de abrigar cerca de
150 alunos simultaneamente. Uma bela praça de esportes, com duas piscinas, pista
de corrida, campo de futebol gramado, ginásio poliesportivo e uma sala com
aparelhos de ginástica completava o conjunto. Detalhe: temendo que os segredos
de sua escola de espiões caíssem nas mãos dos inimigos comunistas, o SNI nunca
pediu o habite-se do conjunto de prédios ao Conselho de Arquitetura do Distrito
Federal. E ninguém nunca cobrou também.
Sala
de aula
Durante
quase duas décadas, a Esni promoveu 3 cursos regulares. Com duração de um ano
letivo, o Curso A era uma espécie de pós-graduação, voltado para a formação de
chefias. Restrito a quem tivesse o 30 grau concluído ou, no caso dos militares,
curso de Estado-Maior, abordava com profundidade temas políticos, econômicos e
sociais brasileiros com análise de conjunturas e estudo de casos.
O
Curso B, com duração de um semestre, era destinado aos analistas de informações
(a turma que ficava nos escritórios do SNI, processando informações), com uma
carga teórica bastante pesada, que incluía matérias como sociologia, história e
ciências políticas. Os alunos do Curso B eram iniciados na história do comunismo
desde o surgimento da doutrina, passando pela Revolução Russa até chegar à
revolução cubana.
O
Curso C, por sua vez, formava os agentes de rua. Tinha o processo de seleção
mais rigoroso, justamente por envolver as atividades mais perigosas e delicadas
do serviço secreto. Realizado em um semestre, as aulas do curso tratavam de
técnicas de vigilância, escutas telefônicas, gravação de conversas por meio de
microfones, métodos de interrogatório. Na década de 1980, a Esni chegou a
contratar um maquiador da TV Globo para ensinar aos alunos como esconder a
verdadeira identidade com a ajuda de cremes, lápis e pós compactos.
Foi
com os ensinamentos do Curso C que, em meados da década de 1980, o SNI realizou
uma de suas missões mais espetaculares. No início do governo Sarney (1985-1990),
Cuba planejava instalar uma representação diplomática no Brasil, depois de mais
de duas décadas de rompimento entre os dois países. Uma equipe de agentes
conseguiu se infiltrar entre os operários da obra da embaixada cubana que estava
sendo construída em Brasília e instalou, na sala do futuro embaixador, uma
escuta ambiental (aparelho minúsculo que capta o som ambiente e o retransmite
para um receptor localizado a quilômetros de distância). O mesmo foi feito num
apartamento de Brasília escolhido para abrigar um importante diplomata cubano.
Após despistar o porteiro do prédio, agentes entraram no apartamento, ainda
desocupado, desmontaram um armário embutido e esconderam atrás dele a escuta
ambiental. Foi uma das operações mais complexas do SNI, por envolver, ao mesmo
tempo, vários tipos de equipes – infiltração, invasão e espionagem eletrônica,
entre outras.
O
resultado, porém, foi péssimo (e, nesse caso, por pura competência dos meninos
de Fidel Castro). A escuta instalada na embaixada acabou não funcionando porque
os cubanos tiveram o cuidado de "blindar" a sala do embaixador com uma espécie
de capa de aço antiescuta, que impedia a transmissão do som. Já na residência do
diplomata cubano, o fracasso teve um motivo mais prosaico. A escuta deveria
ficar no escritório do diplomata, mas, na última hora, o cubano resolveu
transformar o cômodo em sala de televisão. Assim, durante anos, a escuta captou
diálogos de novelas e conversas casuais ocorridas nos intervalos dos programas
de TV. Os grampos acabaram descobertos em 1990, quando Fidel veio ao Brasil para
a posse de Fernando Collor. Para não constranger as autoridades brasileiras num
momento de festa, Cuba fez apenas um protesto reservado.
Depois
de formar mais de 2 mil agentes nos anos 70 e 80, a escola literalmente parou
com a chegada do primeiro presidente eleito pelo voto direto pós-ditadura. Com a
decisão de Collor de extinguir o SNI, a escola ficou sem clientela. Para apagar
a memória dos tempos da ditadura, ganhou nome novo – Centro de Formação e
Aperfeiçoamento de Recursos Humanos (Cefarh). Mas ficou às moscas. Seus
dirigentes, porém, não deixaram de conservá-la, prevendo que aquela fase um dia
passaria. E passou.
Espião
burocrata
A
partir de 1992, após o impeachment de Collor e a ascensão de Itamar Franco, a
escola voltou a funcionar. Três anos depois, admitiria sua primeira turma de
estagiários recrutados por concurso público. O polêmico processo de seleção é,
na verdade, uma exigência da Constituição de 1988, que determina a realização de
concurso público para a contratação de funcionários federais de carreira. Mesmo
se esses funcionários forem os espiões da República.
Assim,
desde 1994, todo aspirante a agente secreto tem de passar pelas duras provas do
concurso, que incluem português, língua estrangeira, política e economia
contemporâneas, história e geografia do Brasil e do mundo, noções de direito e
exames médicos. O candidato também tem sua vida revirada de cima a baixo pelo
serviço secreto, incluindo pesquisa de antecedentes criminais e entrevista com
vizinhos e conhecidos. E, ao final da 1a fase do processo de seleção, o
candidato é submetido a um estágio comprobatório na escola, que pode durar de 3
a 4 meses, período em que ele pode ser desligado, caso não atinja rendimento
satisfatório.
Aqueles
que conseguem passar pela peneira tem de se ajustar a um regime rigoroso na
escola. Rebatizada em 1998 com o nome de Escola de Inteligência (Esint), a
instituição praticamente segue as mesmas regras de conduta da época da fundação
no regime militar. A começar pelo uso de terno e gravata em sala de aula. Os
estagiários também são obrigados a fazer educação física e têm conversas
regulares com o psicólogo da escola. As aulas começam às 8 e terminam às 18 h,
com um intervalo de duas horas para almoço. Os estagiários são ostensivamente
monitorados por funcionários da escola, que se sentam no fundão das salas de
aula. Alguns professores costumam registrar as aulas com câmeras escondidas.
Depois, mostram didaticamente aos alunos-candidatos como fazer o mesmo.
A
partir de 1998, no 2o mandato de Fernando Henrique Cardoso, o serviço secreto e
sua escola ganharam mais status. E também verbas. O orçamento anual das duas
instituições, que é bancado pelos cofres públicos, beira o equivalente a 40
milhões de dólares. O montante é relativamente pequeno, se comparado com outros
países, até mesmo vizinhos, como a Argentina, onde gasta-se quase o dobro desse
valor. O dinheiro sustenta uma estrutura que inclui centenas de especialistas
nos mais variados assuntos, que passam o dia estudando os temas que escolheram –
Movimento dos Sem-Terra, fusão nuclear a frio, questão palestina, lavagem de
dinheiro em paraísos fiscais, África setentrional, igrejas, internet, mata
atlântica, o que for. A manutenção desse exército de especialistas se deve à
necessidade de manter o presidente da República informado sobre qualquer tipo de
assunto. Se os EUA resolverem invadir o Irã amanhã, alegando que o país
muçulmano produz armas atômicas, ou se estourar uma guerra civil na Bolívia por
causa da disputa comercial envolvendo o gás natural, cabe ao serviço secreto
brasileiro produzir relatórios atualizados tanto sobre os países quanto sobre os
assuntos que levaram às crises.
Mas
apesar de lidar com assuntos de todo o planeta, o serviço secreto brasileiro
atua com base na chamada doutrina do "inimigo interno". Ou seja, o inimigo mais
perigoso do Brasil é o próprio brasileiro, que, por causa disso, precisa ser
vigiado. Ao contrário de seus colegas americanos da CIA, franceses da DGSE,
alemães do BnD e ingleses do MI-6, que procuram seus inimigos entre os
estrangeiros, os espiões brasileiros vivem de bisbilhotar seus compatriotas –
uma postura herdada da guerra fria e, ainda hoje, típica dos serviços secretos
de países subdesenvolvidos e não democráticos.
Os
interessados na carreira devem ficar de olho no site do serviço secreto
(www.abin.gov.br), que publica informações sobre os concursos para agentes. O
estagiário aprovado no concurso recebe uma bolsa durante o período em que está
na escola e, ao final do processo, caso seja definitivamente aprovado, começa
com um salário inicial que varia de 1 916 a 3 230 reais.
Mesmo
dentro do serviço secreto, o calouro é vigiado pelos colegas, durante alguns
anos, antes de receber missões mais delicadas. Assim, antes de partir para as
missões clandestinas na rua, sob o manto de falsas identidades, o novato terá de
passar muito tempo atrás de escrivaninhas, analisando papéis sem grande
importância. A vida de agente secreto também tem o seu lado monótono.
Lição
1: como virar um ninja em 37 etapas.
Apostila:
Programa de defesa pessoal e exercícios correlatos.
Em
1973, quando a escola dava os primeiros passos, foi redigida esta apostila
sigilosa. Na época, o SNI imaginava que seus agentes poderiam recorrer ao
jiu-jítsu caso atacados desarmados. "Qualquer pessoa pode ocasionalmente ver-se
obrigada a agir só e sem armas para salvaguardar seu corpo ou bens. É óbvio
quanto vale então ser pessoalmente uma máquina de combate", dizia o texto da
apostila. Com fotografias toscas, o manual ensinava 37 golpes de defesa para
situações como "facada na barriga", "facada no peito", "soco na barriga",
"revólver na barriga", "gravata por trás", "gravata pela frente", "gravata com
socos", "esganamento" e "bengalada de perto". A defesa obviamente acabava
virando ataque, com golpes do tipo "pezada no estômago" e "pezada nas partes
baixas". Ui!!!
Lição
2: A arte de interrogar.
Apostila:
Interrogatório de suspeitos (2) - Técnicas e processos.
Essa
apostila ensinava como perceber uma mentira e, a partir da descoberta,
pressionar o interrogado. De acordo com o manual, eram vários os indícios da
lorota. Se o interrogador visse a carótida do interrogado pulsar, deveria dizer:
"Você está tão perturbado e consciente de sua mentira que essa veia no seu
pescoço parece que vai arrebentar. Isto nunca acontece com uma pessoa que esteja
dizendo a verdade." Outro indício de mentira era secura na boca. "É um sintoma
fisiológico que pode ser observado pelo constante engolir seco, acompanhado de
freqüentes movimentos de língua para umedecer os lábios." E se o preso alegasse
passar mal, pior para ele. "É interessante sugerir que (...) esta peculiar
sensação, como se estivesse com o estômago embrulhado ou um nó-nas-tripas, é o
resultado de uma consciência pesada."
Lição
3: Meu nome é Paiva... Cleobaldo Paiva.
Apostila:
Segurança das instalações.
Ao
ingressar na escola, o agente era apresentado ao "decálogo da segurança", que,
entre outras normas, determinava:
•
"Não deposite na cesta de papéis: rascunhos, notas, cópias carbono e estêncil de
documentos sigilosos. Use somente a caixa apropriada";
•
"Sua condição de homem de informações e suas obrigações não deverão ser objeto
de conversas em reuniões sociais, bares, restaurantes etc.";
•
"Tenha sempre em mente que nas reuniões sociais você não sabe quem está
escutando"; Outra apostila, de 1978, dizia que, dentro da escola, era
obrigatório usar crachá. Um modelo era até exibido no manual, com o desenho de
um homem de bigode, cara de mau e um nome fictício: Cleobaldo Paiva. A carteira
de agente secreto também tinha número de registro: 0007.
Lição
4: fotógrafo oculto.
Apostila:
Emprego de meios fotográficos.
Elaborada
pelos instrutores em 1973, a apostila ensinava aos agentes, em 75 páginas, como
tirar fotos com qualidade de seus alvos. Curiosamente, não havia uma única
menção ao emprego da fotografia na espionagem (essa parte era feita pelos
instrutores, em exposições orais nas salas de aula). A apostila, ao contrário,
era de uma leveza e poesia juvenil. Um exemplo: "Pequenos animais e pequenas
flores quando fotografados de perto poderão nos mostrar detalhes de aspectos e
de cores que nunca antes havíamos observado. (...) As fotos de perto realmente
são interessantes e nos farão descobrir um mundo novo e excitante. Pratiquem portanto este tipo de fotos e boa sorte." Que meigo,
não?